Entre realidade e fantasia, gloriosamente Gloria
Estava, como de costume, em pé. E digitando freneticamente, enquanto via o modo de agir de cada um dos 60 personagens ganhar vida em sua mente. Faltavam apenas quatro meses para a estreia e tudo precisava estar encaminhado. A posição escolhida para escrever conferia urgência, o que ela gostava. Duas de suas três pesquisadoras trabalhavam na sala ao lado, cada uma trabalhando em um núcleo. Enquanto uma verificava os mais recentes números de tráfico de órgãos, um dos assuntos que seriam abordados nessa novela, outra se ocupava de destrinchar os mistérios da cultura turca. Avessa à ideia de ter colaboradores – “não se pode dividir fantasia”, argumentava -, suas pesquisadoras eram as pessoas que acompanhavam de perto seu trabalho.
Gloria, por um momento, desgrudou os olhos da tela do computador e olhou ao redor de seu escritório, absorvendo inspiração de cada detalhe do cômodo. Parou, especialmente, nas prateleiras, fixando o olhar nos porta-retratos. Em um deles estava Daniela, a filha que fora brutalmente assassinada. Em outro, Janete Clair, a primeira pessoa a acreditar em seu talento. A primeira a lembrava de quanta injustiça há no mundo, enquanto a segunda a inspirava a escrever. Talvez dessa junção viesse o desejo de utilizar o palco que é a televisão para dar voz aos problemas enfrentados pela sociedade.
Em uma das paredes, exibia, com orgulho, os diplomas do curso de graduação em História e do mestrado, ambos pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. No outro extremo do ambiente, uma enorme estante de mogno, ia quase até o teto, exibindo a extensa coleção de livros da novelista, incluindo obras do pai, o escritor Miguel Jerônimo Ferrante. Ao passar os olhos pela estante, mais especificamente pela seção destinada às obras dele, lembrou-se com carinho de quando escrevera a minissérie Amazônia – de Galvez a Chico Mendes, em 2007, trama baseada em dois romances de escritores acreanos, sendo um deles seu pai.
Sobre a escrivaninha, devidamente organizados, estavam os principais jornais do dia e uma revista semanal. Manter-se informada sempre fora essencial para ela, não apenas para entender melhor o mundo em que vive, mas como fonte de inspiração para seus escritos. Mesclar ficção e realidade em telenovelas é uma característica sua, cultivada desde Partido alto, ainda em 1984, fruto de uma parceria que não foi bem sucedida com o também autor Aguinaldo Silva.
Os elementos de realidade vinham em forma do que se convencionou chamar merchandising social, quando a autora traz para a telenovela temas sociais que passam a ser discutidos também fora da ficção. Mesmo sabendo não ser essa a função dos folhetins televisivos, Gloria Perez gostava de inseri-los e conseguia, ao menos durante os oito meses em que a novela era exibida, resultados efetivos na “vida real”. Ao mesmo tempo em que suscitavam discussões de interesse público, suas tramas, tal qual já fazia Balzac no início da era folhetinesca, não deixavam de prezar pela fantasia.
Uma rápida pausa para o Twitter. Alimentava pessoalmente sua página na rede de microblogs e, embora fosse impossível responder a tantas mensagens carinhosas dos inúmeros fãs que acumulara ao longo da carreira, gostava de lê-las. Acabara de receber uma notícia incrível, diretamente da Turquia, e queria compartilhar com seus seguidores, ansiosos para a estreia de Salve, Jorge.
Embora habituada a escrever mais de 200 capítulos para cada telenovela, Gloria, por priorizar cenas ágeis – lição aprendida quando era assessorada pelo viúvo Dias Gomes, para terminar de escrever Eu prometo, de Janete Clair – gostava do dinamismo da mídia social e conseguiu, sem grandes dificuldades, compactar a novidade em apenas 140 caracteres. “Recebi uma notícia maravilhosa: guias da Capadocia aprendendo portugues, preparando-se para o efeito #salveJorge”, postou ela, sem acentos e com direito a hashtag.
Passados apenas três minutos, já se notava o impacto do tweet, observando o número de pessoas que compartilhara a mensagem com seus seguidores e/ou respondera à autora. Gloria passou os olhos rapidamente para ver o saldo daquela interação. Uma das respostas despertou sua atenção. “o efeito de suas novelas é sempre incrível! meu TCC é sobre a novela O Clone e confirmo a cada dia a influência de suas tramas”, dizia @anna_pinheiro em resposta a @gloriafperez.
Apaixonada por televisão e pelo poder da telenovela de chegar às casas das pessoas, permitindo que todos tivessem acesso a conteúdos outrora restritos aos mais abastados, sempre se indignou com o estigma enfrentado pelo gênero e a espécie de desprezo por parte dos acadêmicos. Ver uma menina que, em tempos de internet, não apenas se mantinha fiel às novelas como trazia essa discussão ao ambiente universitário, certamente era uma boa notícia. Atarefada e incapaz de ajudar a estudante em seu trabalho de conclusão de curso, desejou, do fundo de seu coração que a jovem obtivesse sucesso. Escreveu um pedido para ter acesso ao trabalho quando pronto, desconectou-se do Twitter e voltou ao trabalho, desejando, em seu íntimo, sorte a Anna Carolina Pinheiro.
(perfil escrito em 15/06/2012, para a disciplina de Jornalismo Literário III)